Passeio amoroso pela Padrela
Vem, dá-me a tua mão. Desçamos os dois, devagar, esta montanha. Sigamos, enamorados, de mãos enlaçadas, as veredas junto ao ribeiro.
Deixemo-nos ir, serenos, pela ladeira da serra. Aqui e ali haverá socalcos inesperados. Porém, de quando em vez, o monte aplaina suavemente, e deixa-nos ver toda a paisagem à volta.
Lá longe, na meia serra - vês? - é o “penedo redondo”! Dizem que, em tempos idos, rebolou do cume da serra. E ali ficou, rochedo- fraga, de sentinela, sob o comando da de "novais".
Sentemo-nos. Lancemos um olhar, ao longe, deixemo-nos enebriar pela novidade cromática da natureza. Desnudemos aquelas árvores. Vejamo-las sem folhas, nuas, como nós. Sintamos a sua e a nossa atracção. Que o devaneio com que as vemos seja este sonho que nós sonhamos agora. E a esperança que ele nos traz de haver realidades sonhadas, e sonhos reais. Sonhemos, pois, o nosso sonho. Tornêmo-lo tão real como aquele canto de ave . Esta realidade que vemos e ouvimos aqui e agora. Há árvores na Primavera vestidas de folhas de Inverno. Aquelas ali, por exemplo, naquele pinhal.
Vem, vamos descendo, assim, sozinhos, no meio da multidão de seres que nos envolve e encanta. Oiçamos os sons antigos dos xocalhos. Os rebanhos branqueiam lameiros verdes. Manchas castanhas, dispersas, de gado pastam junto ao ribeiro. A água, essa, escorre ligeira, cantando áreas plangentes alegres outrora, e beija devagarinho lados de pedras no chão dos regatos.
Oiçamos e olhemos. Agora, os picôtos, seios virados ao céu feitos de terra e arbusto . Espantemo-nos com este prodígio terrestre da natureza.
Ali à frente, o moinho, espera por nós. Abracemo-nos. Façamos o tempo parar.
Afonso Valtique
Afonso Valtique - O passado do futuro
Hoje sinto que ontem será amanhã. E que amanhã sentirei o mesmo que hoje. E isto nem é sentir. É perceber. Perceber que o futuro é sempre o presente a fingir que tem esperança. E que o passado é a morte a existir na memória.
Afonso Valtique
A volta daquela flor zumbe uma abelha
sequiosa, esfomeada
E devora-lhe o néctar
como se bebesse a alegria
Por instinto de sobrevivência
Por ordem da mãe Natureza
A abelha mama na flor
E a Flor dá de mamar
à Natureza.
Afonso Valtique
Vivia do outro lado da linha de caminho de ferro; da estrada e dos campos de milho. Já não a via há um mês. Fora para a praia com os pais e irmãos. Funcionários públicos, no tempo de Salazar, podiam dar-se ao luxo de passarem o mês de Agosto na Praia. Eu apenas sonhava com ela. Com a praia e com ela.
Meti-me a caminho. Tinha não apenas vontade, mas necessidade, de a ver, olhá-la, ver o tom moreno do rosto, dos ombros, das pernas. No caminho, já perto da casa, espreitei entre a folhagem do milho verde. Um grupo de raparigas brincavam, junto da estrada, no logradouro da casa. Queria, desejava, mostrar-me. Mas a vergonha de revelar a minha fraqueza, petrificou a minha vontade. E havia os pais. Que iriam dizer, que iriam pensar, que iriam fazer?
Deixei-me estar no meu regalo do olhar, no meu desvanecimento escondido, secreto. Até que.
Eis que elas abrem o portão, atravessan a estrada , entram pelo caminho. No meu caminho. Sinto o coração saltitar de emoção, de receio. Ter-me-iam visto?
Não era possível. Tivera sempre o milho alto e espesso a servir de barreira entre os olhares. Quiseram sair, correr, saltar. Quiseram um pouco de liberdade. Respirar natureza. Talvez colher as amoras suspensas no vasto silvado que bordava o nosso caminho. Virei-me. Quis regressar rapidamente. Não ser surpreendido. Não ser descoberto na minha singela procura do amor. Não, não era possível fugir, contrariar a força da minha vontade. Fiquei. Viram-me. Aproximaram-se. Sorrimos. Beijei-lhe a face morena. Desejei-a. Fomos.
A. Valtique